Entrei como observador em um dos maiores grupos de crime digital em atividade no Brasil. Com mais de mil integrantes, sendo alguns deles com DDD 86 ou 89 (abrange o Piauí) conectados via WhatsApp, os administradores do canal oferecem diariamente um verdadeiro mercado paralelo: cartões de crédito clonados, documentos falsificados, contas invadidas, dinheiro adulterado e pacotes prontos para aplicar golpes em sites, aplicativos e bancos. A estrutura é clara, direta e voltada para o lucro: com promoções, feedbacks de clientes e até consultoria personalizada.
Foto: Conecta Piauí
Grupo opera livre (e diariamente) via WhatsApp
O grupo funciona no WhatsApp, com acesso restrito às mensagens: apenas os administradores (que usam apelidos como “Pilotin” e “Professor”) podem postar. Os demais membros, mais de mil de diversas regiões do país, acompanham em silêncio o conteúdo publicado, que inclui catálogos de fraudes, imagens de produtos ilegais, instruções, preços atualizados e provas de entrega.
A composição do grupo chama atenção: entre os integrantes, circulam profissionais de nível superior, como advogados, empresários e autônomos, conforme indicações indiretas feitas nas próprias mensagens do canal. O ambiente é tratado com naturalidade, como se fosse um centro comercial. Há atualizações frequentes, campanhas e até suporte.
Foto: Reprodução/Whatsapp
Produtos oferecidos: do documento falso à fraude institucionalizada
Os serviços seguem uma lógica de catálogo, com linguagem de marketing e foco na praticidade. Abaixo, os principais pacotes ofertados:
Documentação falsa (editável e impressa):
- RG, CNH e CNH digital
- Holerites e comprovantes diversos (vacinação, residência, pagamento, renda)
- CRLV e título de eleitor
- Certidões de nascimento, atestados médicos e boletins de ocorrência
- Notas fiscais e históricos escolares
Os arquivos são enviados editáveis, mas há também a opção de adquirir documentos físicos prontos. O canal se apresenta como “referência” em falsificação e se autodenomina “mestre em documentação”.
Foto: Reprodução/Whatsapp
Contas hackeadas e perfis para fraudes em aplicativos
Outra frente do grupo é a venda de contas completas para uso fraudulento em plataformas conhecidas:
- Uber e 99Pop: com rosto do comprador, nome fictício e dados bancários prontos para pescaria (fraudes com motoristas falsos)
- Contas com Pix ativo: em bancos digitais e carteiras como RecargaPay e PicPay
- Golpes em maquininhas: com esquemas de “virada de saldo” em SumUp
Os criminosos ainda anunciam “aprovação de veículos fora dos critérios”, manipulação de dados de reconhecimento facial e uso de fotos adulteradas para burlar validações dos apps.
Foto: Reprodução/Whatsapp
Esquemas em grandes plataformas de e-commerce e apostas
O grupo mantém uma tabela atualizada de fraudes prontas para aplicação em lojas e sites populares. Os “trampos” mais divulgados incluem:
- Shopee, Shein, Amazon e Aliexpress: compras com dados clonados, estorno indevido e manipulação de cupons
- Casas Bahia e Magalu: contas fantasmas para compras no crédito
- Nike: esquema específico que promete aprovações acima de R$ 1 mil
- Golpe da rifa e golpe do leilão: formas de atrair vítimas para falsas promessas de sorteios e arremates
- Fraudes em plataformas de apostas e jogos online, incluindo viradas de saldo e manipulação de créditos
A linguagem usada mistura jargão técnico com gírias de rua, numa tentativa de dar aparência de confiabilidade ao serviço ilegal.
Foto: Reprodução/Whatsapp
Dinheiro falsificado circulando com aparência legal
Dois tipos de cédulas são comercializadas: as chamadas notas “básicas” e as notas “fibradas (importadas)”, ambas disponíveis em valores de R$ 5 a R$ 200. O canal afirma que os produtos passam em testes comuns como:
- Luz negra
- Caneta verificador
- Fita de segurança
- Holografia
- Textura
Os pacotes partem de R$ 140 e vão até R$ 690, com entrega via sedex e códigos de rastreio. As notas são enviadas “dentro de objetos” para evitar interceptação, segundo os próprios administradores.
Foto: Reprodução/Whatsapp
Serviço para negativar CPF como se fosse óbito
Um dos anúncios mais agressivos do grupo é o serviço que registra o CPF de uma pessoa como “falecido” no painel do SUS. Com isso, a vítima enfrenta consequências reais:
- Bloqueio para crédito e financiamentos
- Restrições para abertura de contas
- Dificuldades para contratação de serviços e empregos
- Constrangimento em consultas e verificações
O grupo apresenta o serviço como forma de “atrasar a vida de desafetos”, listando até os “malefícios” como se fosse parte de um benefício ao contratante. O nível de frieza e detalhamento revela a completa naturalização desse tipo de crime.
Foto: Reprodução/Whatsapp
Clientes satisfeitos como propaganda do crime
Grande parte da força do grupo está na exibição constante de feedbacks de clientes. Prints de mensagens, fotos de documentos recebidos, compras realizadas e até vídeos de supostos golpes bem-sucedidos são divulgados como prova da eficácia do serviço.
Essa tática impulsiona a confiança de novos interessados, que passam a consumir os “produtos” como se estivessem contratando qualquer serviço digital, mas com o agravante de que todos os envolvidos estão cometendo crimes.
Para finalizar
O que se observa dentro do grupo é a profissionalização do crime digital no Brasil. A operação funciona como um e-commerce paralelo: tem cardápio, promoções, pacotes personalizados, atendimento exclusivo e logística de entrega. O uso do WhatsApp como plataforma central permite mobilização nacional com facilidade.
Mais do que um grupo isolado, essa rede representa um retrato da impunidade no ambiente virtual. Enquanto o canal cresce e fatura com golpes prontos, milhares de brasileiros têm seus dados violados, seus nomes usados em fraudes, e suas finanças sabotadas por criminosos que não escondem o rosto nem mesmo o número.