sábado, 8 de abril de 2017

Aos 55 anos, paciente lembra a época ‘das amarras’ em manicômios

Aos 55 anos, paciente lembra a época ‘das amarras’ em manicômios

O Especial Transmídia dessa semana discute sobre a loucura, seus estigmas e as mudanças decorrentes da luta antimanicomial


Fotos: Jailson Soares/ODIA

Domingas Maria tinha 26 anos quando percebeu que havia algo de errado com sua saúde. Após a morte do irmão, sintomas de uma forte depressão e mudanças repentinas de humor começaram a incomodar o decorrer da sua vida. Logo depois, ela receberia encaminhamento para tratamentos em clínicas psiquiátricas de Teresina. O período, no entanto, foi marcado não só pela possibilidade de tratamento, mas por momentos de “terror”, como descreve.
Domingas, hoje, tem 55 anos e elenca inúmeras vitórias conseguidas pelo tratamento feito ao longo da vida. Mas os bons resultados não apagam da memória o que teve de viver em décadas passadas. “Comecei meu tratamento no ano de 1988 e a minha sorte foi que eu sempre tive muito apoio da minha família, meu marido, minha mãe que já é falecida e, agora, meus filhos que são crescidos, todos me apoiam. Mas cheguei a passar mais de mês internada no Meduna, no Areolino de Abreu, onde a gente chegava a ficar amarrada, acorrentada, em tempo de crise”, descreve com olhar distante.
Domingas também relembra que, por conta do tratamento enclausurado, chegou a ser vítima de agressão de outros pacientes. “No Areolino, quando os outros estavam em crise, eles batiam na gente, roubavam nossas coisas, era um terror”, relata.
A inserção em um Centro de Atenção Psicossocial consolidou uma mudança definitiva na sua qualidade de vida. Desde 2011, a senhora frequenta as atividades e tratamentos ofertados através do Caps Sudeste, onde afirma elencar muitas vitórias.
Mesmo tendo o apoio da família, Domingas destaca o que enfrenta devido o preconceito do restante da sociedade. A senhora afirma que não são isoladas as vezes que foi tratada com indiferença pela sua condição de saúde. “Já ouvi muito, ao entrar no ônibus, as pessoas falando ‘já vem os doidos do Caps’. Nós somos seres humanos como qualquer outro, é difícil de ouvir isso”, afirma.
Mesmo com as barreiras a serem enfrentadas, Domingas se considera uma mulher de sorte. O tratamento contínuo foi decisivo para hoje ela se considerar a ‘sortuda’, que afirma ser.
A família vai aumentar em pouco tempo com a chegada de mais um neto. E, pelo que Domingas afirma, não só com as palavras, mas pela forma como vê a vida, ela nunca esteve tão preparada para acompanhar toda essa felicidade.
Hospitais sem leito
Ao passo que a Rede de Atenção Psicossocial do Estado do Piauí cresce na oferta de espaços que consolidam a humanização do tratamento de saúde mental, um outro empecilho continua a preocupar gestores e causar barreiras para os usuários: a falta de leitos psiquiátricos em hospitais gerais.
O contexto acontece por inúmeros fatores, entre eles passeiam a hegemonia do modelo biomédico hospitalar, barreira à efetividade do trabalho em equipe multiprofissional, existência e manutenção de preconceito e estigma contra a pessoa com transtorno mental e falta de estrutura física dos hospitais gerais.
Em Teresina, o único hospital a ofertar leitos especializados para o acolhimento de pessoas com transtornos psiquiátricos não atende mais a demanda há cerca de cinco anos. “Qualquer hospital pode atender o cidadão para garantir seus direitos à saúde, só que temos lidado com a insegurança e, por vezes, o preconceito que acontece com a chegada desse usuário nos leitos gerais. Por isso, houve a política de implantar leitos de saúde mental em hospitais gerais e nós tivemos em Teresina, em 2011, um projeto piloto, que era para ser estendido para a rede, na unidade de saúde da Primavera, onde quatro leitos funcionaram até 2012, quando uma nova portaria do Ministério da Saúde estabeleceu que essa modalidade não poderia ser implantada em hospitais com menos de 50 leitos”, explica a técnica da Gerência de Saúde Municipal, Maria do Amparo.
Agora, a gestão está em processo de estabelecimento da definição de novos leitos em uma unidade que atenda às recomendações nacionais. O panorama também é destacado pela Gerência de Saúde Estadual. “Realmente, o leito em hospital geral é onde encontramos muitas barreiras e resistências. É preciso fazer entender que a pessoa com transtorno mental é uma pessoa que tem direito ao acesso à rede de maneira completa. Precisamos continuar avançando na descentralização da urgência e emergência, que é centralizada no Areolino de Abreu”, finaliza Gisele Martins.
Internação
Nos últimos 11 anos, o Piauí perdeu 46% dos leitos de internação psiquiátricos no âmbito da rede pública, saindo da oferta de 400 leitos, em 2005, para os atuais 217, em 2016. Os números foram divulgados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em um estudo que comprova que, em um contexto geral, o país perdeu quase 40% dos seus leitos de internação especializados para pacientes com transtornos mentais. No ranking, o Piauí ocupa a décima posição no número de perdas de leitos.
Fazem parte do cálculo tanto os leitos em hospitais psiquiátricos como aqueles em hospitais gerais. Redução essa que se baseia na Lei 10.216/01, a qual estabelece novos parâmetros para o segmento, privilegiando-se uma abordagem voltada para atenção ambulatorial e não somente a internação.
A decisão, no entanto, causa controvérsias. Na análise do CFM, a redução põe em risco a segurança do atendimento. A portaria 1.631, editada em 2015, define a necessidade mínima de um leito para cada 23 mil habitantes, o que dá 0,04 leitos para cada grupo de mil habitantes. Anteriormente, o percentual era de 0,45 leitos psiquiátricos por mil habitantes.

Segundo a Gerência de Saúde Mental do Piauí, o Estado ocupa uma posição confortável dentro das exigências do Ministério da Saúde. Isso porque, atualmente, conta com cerca de 50 leitos excedentes ao que foi estabelecido como mínimo dentro da portaria.
“Não temos desassistência em termo de internação por leitos. A Organização Mundial da Saúde aponta a necessidade de um leito para cada 23 mil habitantes, assim, o Estado necessitaria de 131 leitos. Hoje, o Hospital Areolino de Abreu tem 160 leitos de psiquiatria disponíveis e também temos 30 leitos na Santa Casa de Misericórdia de Parnaíba, totalizando 190 leitos. Nessa perspectiva, temos mais de 50 leitos sobrando”, explica a gerente de Saúde Mental do Estado, Gisele Martins.
No Brasil, os leitos remanescentes têm que dar vazão a uma enorme demanda. De acordo com estimativas do Ministério da Saúde, 3% da população sofre de transtornos mentais graves; 6% de problemas mentais decorrentes do uso de álcool e outras drogas e 12% vão necessitar de algum atendimento em saúde mental em algum momento da sua vida.
O Especial Transmídia continua discutindo sobre a loucura e seus estigmas na edição do fim de semana do Jornal O DIA, na TV O DIA e em matéria publicada amanhã, no Portal O DIA.

fonte portal o dia