Diferente da produção nas fábricas convencionais, mesmo as que utilizam técnicas artesanais, a farinhada constitui um bem da cultura imaterial. Trata-se de evento que congrega agricultores e seus familiares, vizinhos, amigos, podendo complementar a mão de obra necessária com a contratação de trabalhadores diaristas. Elemento importante na composição da renda familiar, a farinhada estreita os laços sociais, permite a troca de experiências e preserva a cultura. A participação dos jovens é a garantia da transmissão desse saber às novas gerações.
“A farinhada permite o aproveitamento de produtos como o cascalho e o leite (água usada na lavagem da massa) que são usados na alimentação de animais. Esta prática cultural tem sido um termômetro das condições de vida dos agricultores, além de contribuir para sua permanência no campo. Em geral, quando os produtores deixam de realizar a farinhada, significa que fatores econômicos ou climáticos têm afetado significativamente suas vidas”, afirma Rodrigo Gerolineto.
Casa de farinha (Foto:Divulgação)
O professor destaca que, por ter essas características, a atividade da farinhada deve ser observada com atenção. “Ao valorizarmos a cultura imaterial, estamos promovendo a afirmação dos portadores dos bens culturais como cidadãos e sujeitos históricos. A cidadania cultural é uma das dimensões da vida social capaz de promover empoderamento das pessoas a partir dos locais onde vivem”, conclui Gerolineto.
A pesquisa também se preocupa em apontar possíveis ações de valorização e proteção do bem cultural, em consonância com a Convenção da Unesco de 2003, que prevê a salvaguarda dos bens imateriais e a sensibilização em nível local, nacional e internacional, para que os bens culturais sejam valorizados. As tradições, saberes e expressões culturais constituem verdadeiros patrimônios das sociedades em todo o mundo. No caso da farinhada da Serra do Tanque, existe uma gama de conhecimentos e competências pertencentes à dimensão da cultura intangível que servem à sustentabilidade da vida no campo. Por isso, também é um modo de se identificar e estabelecer o seu lugar no mundo por meio de ações criativas e inovadoras. Os instrumentos e as técnicas podem variar, o que é revelado pelas diferentes configurações dos aviamentos e nas adaptações dos instrumentos de produção.
Para conhecer a relevância deste bem cultural na formação da identidade dos moradores da Serra do Tanque, a pesquisa tem abordado as histórias de vida dos farinheiros e ex-farinheiro e, de acordo com essa abordagem, é possível perceber a ligação afetiva com este “saber fazer” que delimita episódios marcantes, como a aquisição de uma pequena propriedade ou o aprendizado, ainda na infância, junto a mães, pais ou avós já falecidos.
“As memórias a cerca do passado de farinheiros e farinheiras trazem forte carga emotiva, e, por outro lado, preocupações com o futuro. As novas gerações já se dividem entre a vida na serra e o trabalho na cidade para sustentar suas famílias”, afirma o professor Rodrigo Gerolineto Fonseca.
O coordenador destaca que, com os depoimentos coletados durante a pesquisa, será feito um documentário, que pretende valorizar e promover este patrimônio imaterial brasileiro.
“O documentário não tem a pretensão de se destacar como obra cinematográfica, mas de popularizar a produção científica e estreitar os laços com a comunidade, retornando ao público o investimento feito em nosso trabalho. Trata-se de um esforço em encontrar novas linguagens e suportes para comunicar a produção acadêmica e coletivizar o acesso ao conhecimento. Para isso, temos ainda o apoio do Pibex e do Pibic Jr. do IFPI”, destaca o professor.
Riscos à atividade
Durante os estudos, o grupo tem identificado alguns aspectos que são determinantes na redução da atividade na região da Serra do Tanque, como a redução da produção das roças de mandioca, localizadas na cidade de Marcolândia, devido à escassez de chuvas, e o aumento dos custos de produção.
Além disso, as mudanças características dos processos de globalização agravam esse quadro. No plano econômico, o encurtamento das distâncias e a dinamização da economia regional, já que Picos é uma cidade polo, facilitam tanto as mudanças nos hábitos de consumo, como o ingresso de novos produtos concorrentes com a goma produzida na região.
“Observamos produtos expostos nas gôndolas de supermercados da cidade de Picos e foi possível encontrar goma fresca embalada a vácuo, vinda dos estados de Mato Grosso, Paraná, Paraíba e Pernambuco. A produção em escala feita por estas indústrias, as compras por impulso nos supermercados e a facilidade no preparo do alimento oferecem forte concorrência à produção artesanal. Além disso, os produtores da serra devem arcar com o ônus do transporte à feira livre, principal local de venda, ou entregá-la a atravessadores”, destaca o professor.
Já no plano cultural, a pesquisa constata que o crescimento urbano de Picos tem atraído os jovens com ofertas de trabalho, estudo e lazer. Assim, a formação destes jovens e seus projetos pessoais se distanciam do ritmo da vida na comunidade rural, onde se dá a transmissão geracional do bem imaterial. Ao mesmo tempo, a eletrificação permitiu a chegada da internet, vetor tecnológico impulsionador de novas práticas de consumo cultural entre os jovens e novos padrões de sociabilidade.
Como possível solução para o problema, o professor Rodrigo Gerolineto destaca a importância da farinhada estar inclusa dentre as prioridades das políticas de desenvolvimento local e regional.
“Como medida de gestão, inclui-se, por exemplo, a possibilidade de estreitar os laços entre os produtores e os empresários locais. O patrimônio imaterial, assim protegido, pode alcançar valor simbólico, ganhar visibilidade e gerar renda para a comunidade, estimulando a sua continuidade”, finaliza Rodrigo.
fonte portal o dia