sexta-feira, 19 de julho de 2024

Tragédia no Semiárido: Plantação de buritis destruída por Projeto Solar

 Agricultores de São Gonçalo do Gurgueia enfrentam prejuízos socioambientais devido ao parque solar da Enel Green Power.

Reginaldo Lira Barros, 57, há tempos mantinha uma plantação de aproximadamente 200 buritis em São Gonçalo do Gurgueia (PI), no semiárido brasileiro. Dos frutos dessas árvores, produzia doces, sorvetes e sucos que comercializava na região, garantindo seu sustento e o de sua família. No entanto, seu trabalho foi bruscamente interrompido após a chegada de um projeto de parque solar no município, que levou à morte das centenas de árvores em sua propriedade. O Ministério Público do Estado do Piauí (MP-PI) está investigando o caso.



Morador diz que perdeu mais de 200 buritis após instalação de parque solar. FOTO: Reginaldo Barros/Arquivo pessoal.


O Parque Solar e suas consequências

Autodenominado como "o maior da América do Sul em construção", o projeto de energia solar é liderado pela Enel Green Power, uma empresa do Grupo Enel especializada em energias renováveis. A construção começou em 2018 e o parque foi conectado à rede nacional em 2020. O empreendimento ocupa uma vasta área de 12 milhões de metros quadrados, o equivalente a 1.680 campos de futebol padrão FIFA.

O projeto visa produzir energia limpa e evitar a emissão de mais de 1,2 milhões de toneladas de dióxido de carbono por ano, um gás de efeito estufa que contribui para o aquecimento global. Contudo, moradores locais relatam que a execução do projeto tem causado severos danos ao solo da região, além de assorear brejos e nascentes de rios, resultando em prejuízos socioeconômicos significativos.


Impactos ambientais e socioeconômicos

As primeiras perturbações foram sentidas em 2019, durante o período chuvoso que se seguiu à instalação dos painéis solares. Barros explica que os painéis foram colocados em uma região de serra, onde o desmatamento para a instalação das placas fotovoltaicas eliminou a vegetação nativa, alterando o território de maneira que o solo deixou de reter a água da chuva. Isso resultou em enxurradas que atingiram propriedades vizinhas, inclusive a de Barros.


Parque solar da Enel em São Gonçalo do Gurgueia. FOTO: Enel/Divulgação.


"A água desce para as nossas propriedades, para as nascentes dos rios, para os brejos. Matou a vegetação e os buritis, que eram importantes para uma atividade de extrativismo que fazemos na região. Os buritis servem para muitas coisas, como sorvete, suco, doce. Essa renda acabou. Só na minha área morreram 270 árvores. Não existe mais buriti.", lamenta Reginaldo Lira.

Nos primeiros anos de operação, a empresa tentou mitigar a situação, construindo barragens para conter a água que escorria do parque solar. No entanto, os moradores afirmam que essas medidas foram insuficientes. Em 2024, três novos assoreamentos e erosões foram registrados.

"Não fizeram nenhuma drenagem correta, a água aumentou e o dano foi completo. O problema é que essa água está entrando no único rio da região, o Gurgueia, que já se tornou impróprio para consumo."


Mobilização e reivindicações dos moradores

A comunidade local se organizou na Associação Alto Do Gurgueia, buscando mobilizar a população e exigir ações contra os impactos do empreendimento. Desde a primeira manifestação em 2020, pouco progresso foi feito. Segundo Barros, a Enel havia prometido fornecer água potável através de poços tubulares, mas a instalação desses poços não atendeu às necessidades da comunidade.


Resposta da Enel Green Power

Em resposta à reportagem, a Enel Green Power informou que o local onde está situado o parque solar registrou "chuvas com volumes muito acima dos níveis históricos nos últimos anos", o que causou "movimentação de sedimentos na região do entorno do parque". A empresa afirmou que, como parte de um acordo com a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí (SEMAR), foram realizadas obras civis para melhorar o sistema de drenagem do parque e proteger as áreas adjacentes.

"As obras envolveram a construção de novas bacias de amortecimento de cheias e a melhoria das existentes, ajudando a reduzir a vazão de deságue nos córregos no momento de pico das chuvas. Também foram construídas barreiras drenantes que atuam na retenção de eventuais sedimentos que, por característica da região - que é uma área em processo de desertificação - se movimentam na área do entorno do parque", explicou a Enel.

A empresa alegou que essas ações tiveram o efeito desejado durante os períodos de chuva entre 2020 e 2022, sem registros de transbordamentos ou alagamentos. Além disso, contratou uma empresa especializada para realizar estudos técnicos sobre os impactos e as necessidades de compensação dos moradores, informando que 135 famílias estão recebendo indenizações conforme suas necessidades. Para os danos aos brejos e rios, a Enel construiu três poços de água e mantém uma entrega mensal de água para 37 famílias desde 2020.


Investigação do MP-PI

O MP-PI informou que um inquérito civil público está em andamento na Promotoria de Justiça de Gilbués para apurar os danos socioambientais causados pelo Parque Solar São Gonçalo. Em nota, o MP-PI comunicou que, no início deste ano, a Promotoria solicitou a atuação conjunta do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente (CAOMA/MPPI) para verificar as medidas adotadas pela empresa e os projetos de recuperação das áreas degradadas.

A visita técnica realizada em junho de 2024 contou com a participação de representantes da Enel Green Power e dos moradores afetados.

"A Promotoria de Justiça de Gilbués/PI aguarda a confecção do relatório da nova perícia, que será encaminhado pelo CAOMA/MPPI, a fim de deliberar sobre as medidas judiciais ou extrajudiciais cabíveis", informou o MP-PI.

Ainda não há data para a conclusão do inquérito.


Assoreamento registrado na propriedade de Alexandre. FOTO: Reginaldo Barros/Arquivo pessoal.


Futuro incerto para os agricultores

Enquanto as investigações continuam, Reginaldo Lira e outros agricultores locais aguardam por soluções que possam reparar os danos causados e permitir a retomada de suas atividades.

"Nós só queremos o que é justo. Queremos nossas terras de volta, a água limpa e a chance de recomeçar. Não estamos contra o progresso, mas ele não pode vir à custa de nossas vidas e de nosso sustento", desabafa Barros.


Propriedade do Alexandre em 2014 (à esquerda) e em 2021 (à direita). FOTO: Reginaldo Barros/Arquivo pessoal.


A situação em São Gonçalo do Gurgueia é um exemplo claro dos desafios que surgem quando o desenvolvimento de grandes projetos de energia renovável não é devidamente equilibrado com a proteção ambiental e os direitos das comunidades locais. O resultado do inquérito do MP-PI poderá definir o futuro da região e das famílias que dependem de seus recursos naturais para sobreviver.

FONTE: bandpiaui.com.br/ com informações UOL / Heloísa Barrense - Ecoa.